terça-feira, 4 de novembro de 2008

A coceira

Fernando tinha o péssimo hábito de se coçar. Na verdade era mais do que um hábito – uma manifestação concreta de suas angústias e intranqüilidades.
Vejam, a questão não gira em torno de um banho menos demorado ou de insuficientes esfregadas. Cada variação emocional era traduzida fisicamente em uma coceira.

Talvez ele sentisse que eliminava o desconforto esfregando alguma parte do corpo – ora a testa, ora o pescoço, o tórax, as orelhas, o antebraço, etc., etc. Talvez fosse uma expressão impensada e quase inconsciente, que se repetia religiosamente a cada agonia sentida.

Por vezes o simples calor era a razão da coceira. Mais comum ainda era a agonia proveniente da discordância intelectual: ao ouvir uma idéia estranha ou inconsistente (à sua percepção) a história se repetia – a barba, a nuca e as costas se tornavam o objeto da violência de Fernando. Antes mesmo de responder ou contra-argumentar era estampado o gesto (às vezes nem respondia, contentava-se com a expressão física).

Este é o ponto que me esqueci de mencionar: as coçadas eram feitas com a agressividade de quem decide preparar um terreno para a colheita. Tanta força era utilizada nestes momentos, que o corpo do indivíduo sofria. Vejam a dualidade da coisa: por um lado um prazer momentâneo era obtido por meio da coceira (seja por simplesmente extravasar, ou por sentir que estava se livrando de algum incômodo real); por outro, cada momento de satisfação era seguido de feridas que se abriam pelos locais violentados.

Foi numa dessas lutas corporais contra si que ele percebeu ser esta uma metáfora da vida humana. Não poucas vezes ele tentou resolver questões existenciais com métodos “instantâneos” de satisfação. O resultado era óbvio: um leve prazer momentâneo, seguido de uma ferida aberta.

Aparentemente ele teve a descoberta de sua vida: Os problemas reais exigem soluções reais, de outra forma, eles criarão novas dificuldades. Ainda assim, a percepção desta verdade o incomodou tão profundamente que, alguns minutos depois, ele acordou da viagem mental e percebeu as gotas vermelhas no chão do quarto – havia se coçado e se machucado mais uma vez. O sangue era testemunha de sua teimosia.

Há esperança para um Fernando desligado?

Nenhum comentário: