quarta-feira, 11 de novembro de 2009

LIBERDADE OU AUTONOMIA? UMA ANÁLISE TEO-REFERENTE DO “SHOW DE TRUMAN”[1]


LIBERDADE OU AUTONOMIA?

UMA ANÁLISE TEO-REFERENTE DO “SHOW DE TRUMAN”

Allen Ribeiro Porto

allenporto@gmail.com

1 INTRODUÇÃO: FILMES E COSMOVISÃO

Costuma-se perceber com relativa facilidade os esquemas conceituais e sistemas de crenças/valores de determinados filósofos. Tratados filosóficos parecem advogar, de maneira mais direta e articulada, as visões de mundo que apresentam.

Possivelmente pelo contraste entre a clareza apresentada em obras desse porte – cujo objetivo é a apresentação direta e sistemática de determinada cosmovisão – e as obras artísticas, há quem considere estas últimas neutras do ponto de vista filosófico, exibindo apenas aspirações do espírito humano na busca pelo belo.

O observador mais atento, porém, perceberá que mesmo as acepções sobre o "belo”estão situadas dentro de um contexto filosófico. O belo em determinadas expressões artísticas é contraposto à noção de beleza em outras. Isto torna evidente um marco referencial que define as obras de arte: elas se percebem inseridas em uma tradição – articulada ou não – de enxergar o mundo.

Homens como Francis Schaeffer (2003, p.142) reconheceram a importância das artes na tradução e apresentação de cosmovisões ao povo. Segundo ele (SCHAEFFER, 2002, p.25), o caminho da disseminação de idéias tem início na filosofia, passando pelas artes, e finalmente alcançando a teologia[1].

A perspectiva da tradição na qual Schaeffer se insere, observa as artes como expressões culturais e veículos de idéias – catalisadores para que os sistemas filosóficos sejam entendidos e apreendidos pelo homem médio.

Exemplo disso está no cinema. Analisando obras cinematográficas da década de 1960, Schaeffer (2003, p.142-3) reconhece a filosofia ali presente.

Especialmente nos anos 60, as maiores declarações filosóficas às quais se davam ouvidos foram veiculadas por filmes. Filmes filosóficos como estes atingiam muito mais pessoas do que os escritos filosóficos ou até a pintura e literatura. Entre estes filmes podemos citar Ano passado em Marienbad (1961) de Alain Resnais, Tystnadem (1963) de Ingmar Bergman, Julieta dos Espíritos (1965) de Frederico Fellini, Blow-Up – depois daquele beijo (1966) de Michelangelo Antonioni, A Bela da Tarde (1967) de Luis Buñuel e A Hora do Lobo (1967) de Ingmar Bergman. Todos eles mostravam de maneira figurada (e de modo bastante intenso) como é ver o homem como máquina e também o que é tentar viver no campo do irracional. Nele, o homem é deixado sem categorias. Ele não tem como distinguir entre o certo e o errado, ou até entre o que é objetivamente verdadeiro como algo oposto à ilusão ou fantasia.[2]

Percebe-se, deste exemplo, que as obras artísticas – e o cinema em questão – não apenas não são neutras, no sentido de estarem destituídas de pressuposições filosóficas, como são mais eficazes em divulgar tais cosmovisões para as massas, sem a linguagem técnica e pouco acessível dos tratados filosóficos.

Schaeffer possivelmente faria a mesma análise na contemporaneidade: dentre as expressões artísticas, a música e o cinema parecem ter maior alcance, em contraposição à literatura, pintura, poesia, escultura e dança, por vezes classificadas como “artes elitizadas”.

O roteirista de Hollywood, Brian Godawa (2004, p.15) concorda com Schaeffer, e se contrapõe às afirmações que buscam classificar os filmes como “apenas histórias para entreter".

[…] nada poderia estar mais próximo de uma meia verdade. Embora seja verdade que a história é o alicerce de um filme, um exame da arte e da estrutura da narrativa mostra que o poder de atração dos filmes não é simplesmente que eles são “boas histórias” de uma maneira indefinível, mas que essas histórias falam a respeito de algo. Elas narram os eventos em torno dos personagens, que vencem obstáculos para alcançar algum objetivo e, no processo, são confrontados com a necessidade pessoal de mudança.[...]

Na perspectiva de Godawa (2004, p.15), os filmes caminham no sentido de buscar a solução para os conflitos apresentados na narrativa. Esse trilhar rumo à resolução dos problemas apresentados é considerado a salvação proposta pelo autor, ou, na linguagem de Godawa(2004, p.15), a 'redenção'.

Em resumo, a narrativa de histórias nos filmes resume-se à redenção, isto é, à recuperação de algo perdido ou obtenção de algo necessário. […] Os filmes podem ser basicamente histórias, mas essas histórias são no final, no fundo, acima de tudo e quase sempre a respeito da redenção.[3]

Com esta análise e sua devida ressalva, o autor em referência possibilita uma percepção dos filmes que busque compreender a cosmovisão apresentada a partir das estruturas redentivas propostas pelo autor. Nem todos os filmes terão uma proposta de redenção, como a ressalva 'quase sempre' na fala de Godawa deixa transparecer. Contudo, mesmo a falta de uma proposta de redenção demonstra uma perspectiva a respeito dela.

A compreensão possibilitada através do instrumental de Godawa se encaixa perfeitamente com a tradição reformacional[4], que tem como grande expoente o jurista e filósofo holandês, Herman Dooyeweerd. A adequação entre essas linhas se dá exatamente no aspecto da redenção. Segundo a perspectiva neocalvinista, o motivo-base adequado para se analisar a realidade é o “Criação-Queda-Redenção”, que se contrapõe aos motivos-base anteriores: Forma-Matéria, Natureza-Graça e Natureza-Liberdade. Dooyeweerd (1984, p.61)[5] explica esses motivos-base como elementos que regulam a percepção da realidade por alguém ou uma comunidade.

Este espírito de comunidade opera através de um motivo-base religioso, que dá conteúdo à engrenagem central da inteira atitude de vida e pensamento. No desenvolvimento histórico da sociedade humana, este motivo irá, para ter certeza, receber formas particulares que são historicamente determinadas. Mas no seu significado religioso central ele transcende todas as formas dadas historicamente. Qualquer tentativa de explicação dele em uma perspectiva puramente histórica, portanto, necessariamente se move em um círculo vicioso. (tradução livre)[6]

Na medida em que os filmes trabalham uma redenção, eles apresentam uma perspectiva sobre criação e queda, e, portanto, deixam patente a cosmovisão que os norteia. Esta, segundo Dooyeweerd (1984, p.61), pode ser de obediência, operada pelo Espírito Santo, ou de apostasia, caminhando para a “deificação da criatura”.

A presente análise caminha de mãos dadas com as visões acima apresentadas. Está baseada nos pressupostos Teo-referentes, especialmente na tradição calvinista e reformacional de Dooyeweerd, com aproximações de Schaeffer e Godawa. Este último, por seu trabalho específico de análise cinematográfica, será utilizado como marco referencial fundamental.

O filme utilizado para análise foi “O Show de Truman”, cujos dados serão oferecidos com maiores detalhes nas páginas que seguem. A escolha da obra se deu tanto pelo gosto do pesquisador, quanto pela percepção de elementos que possibilitam uma análise clara dos pressupostos envolvidos na produção.

A inserção cultural nada mais é do que o cumprimento do mandato do Éden. Observar criticamente a cultura, e contribuir para a sua produção, é tarefa do cristão tanto quanto o evangelismo pessoal. Isto confere à presente análise a devida relevância, na medida em que não a considera trabalho “menos religioso”, mas a reconhece em sua integralidade e valor no serviço a Deus e ao Reino.


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[1] Segundo a proposta de Schaeffer (2002, p.25) a ordem é: filosofia – arte – música – cultura geral – teologia.


[2] Grifos do autor.


[3] Grifo do autor.

[4] Outras designações para esta corrente são: Neocalvinismo, neocalvinismo holandês e Escola de Amsterdã. Mais específicos, porém relacionados a esta tradição, são os termos: Filosofia da Idéia de Lei, ou Filosofia Cosmonômica, fundada por Dooyeweerd.

[5] No documento em PDF oferecido pelo Reformational Publishing Project, o trecho mencionado está na página 725.

[6] This spirit of community works through a religous ground-motive, which gives contents to the central mainspring of the entire attitude of life and thought. In the historical development of human society, this motive will, to be sure, receive particular forms which are historically determined. But in its central religious meaning it transcends all historical form-giving.

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