terça-feira, 8 de junho de 2010

Fundamentalista ou reformado? J Gresham Machen e sua resposta ao liberalismo teológico clássico [3]

3 O IMPACTO DO LIBERALISMO TEOLÓGICO SOBRE AS IGREJAS CRISTÃS NO INÍCIO DO SÉCULO XX

A questão que irrompe a partir da observação da vida de Machen é: o que causou tão forte reação? Que movimento teológico foi este que causou tanta repulsa no teólogo ortodoxo? Uma radiografia desta vertente teológica é bem-vinda para a compreensão das posturas percebidas acima.

O Dr. Augustus Nicodemus Lopes concorda com Machen em pensar que “o Liberalismo não é cristianismo, mas outra religião”1. As raízes deste movimento podem ser percebidas no Iluminismo, como destacam Stanley Grenz e Roger Olson.

Apesar do Iluminismo ter chegado ao fim, a teologia nunca mais seria a mesma. […] A teologia jamais seria capaz de ressuscitar o antigo sistema de crenças, pois as autoridades tradicionais da Bíblia e da Igreja haviam sido destronadas para sempre. […] Para essa nova classe de intelectuais, a única forma de avançar em meio aos resultados do Iluminismo era incorporar sua motivação básica na busca por novas formas de comprender a fé cristã. […] Assim, [os teólogos do século XIX] procuraram ir além do Iluminismo, incorporando ao mesmo tempo os avanços desta era2.


Os mesmos autores destacam como princípios do iluminismo a razão, a natureza, a autonomia, a harmonia e o progresso3. Os liberais assimilaram a mentalidade do seu tempo, e fizeram uma síntese entre a proposta iluminista e a cristã. Tal junção ficou marcada pela aceitação dos postulados iluministas, e uma leitura da Escritura e de toda a Teologia e prática cristã a partir dos pressupostos racionalistas.

O fundamento filosófico proposto por Kant (1724-1804), no qual a metafísica teria os seus dias contados, e tudo o que restaria seria o âmbito moral – do imperativo categórico – deu suporte ao novo modo de fazer teologia; a noção “dinâmica” de verdade apresentada por Hegel4 (1770-1831) levou os teólogos a repensar o significado de suas proposições; e o modelo de Schleiermacher (1768-1834) elevou a experiência e a subjetividade, diminuindo o lugar dos credos e doutrinas no cristianismo.

O historiador Justo González5 acrescenta a esta tríade que pavimentou o espírito da Teologia moderna, o teólogo e filósofo Søren Kierkegaard (1813-1855). A noção kierkegaardiana da fé como “salto no escuro” também contribuiu para o rompimento da mentalidade cristã ortodoxa. Embora esta contribuição caminhe de mãos dadas com o pensamento liberal, Kierkegaard é descrito por Olson como um “antiliberal”6.

Como o historiador Alderi Souza de Matos descreve, os teólogos liberais não pretendiam a destruição da fé cristã, mas “transformar o pensamento cristão à luz da filosofia, da ciência e da erudição bíblica modernas”7.

O caminho percorrido pelo liberalismo, através de teólogos como Albrecht Ritschl (1822-1889), Adolf Harnack (1851-1930) e Albert Schweizer (1875-1965) foi o de afastamento da ortodoxia em vários sentidos. Para Olson, a essência da Teologia Liberal estava no “reconhecimento máximo das reivindicações da modernidade em uma estrutura cristã”8. Ela reconhecia a modernidade como fonte originária da teologia cristã, e sustentava três temas principais: a imanência de Deus, a moralização do dogma, e a salvação universal da raça humana.

A imanência de Deus foi enfatizada, a ponto do discurso liberal adquirir nuances panteístas, segundo a descrição de Olson9, principalmente pela influência de Hegel e sua idéia de um “espírito universal”. Outra tendência que brotou desta ênfase na imanência estava na revisitação da cristologia em termos antropocêntricos. A busca do “Jesus histórico” se tornou a moda teológica do momento. O Messias era analisado em Sua humanidade, sem maior espaço para a consideração de divindade nEle. Por vezes, a divindade de Jesus foi abandonada, restando apenas sua humanidade. A procura seguia no sentido de se desvencilhar dos relatos míticos e poéticos da igreja primitiva, até que se alcançasse o registro fiel do Jesus humano, o exemplo moral para a humanidade.

A moralização do dogma era outro tema corrente do liberalismo. Pela ênfase na imanência e redução do campo da metafísica, o aspecto moral tomou forma de elemento prioritário na religiosidade liberal. A teologia foi limitada à esfera das relações éticas, e a discussão sobre a vida com Deus era secundária diante de questões políticas e sociais.

Por fim, partindo da descrença em elementos considerados míticos, como o diabo e o inferno, muitos liberais caminharam no sentido do universalismo, defendendo a salvação final de todos os homens. A validade de cada religião enquanto expressão de anseios humanos e formas de melhor interação social foi considerada mais importante que as fórmulas e credos cristãos exclusivistas.

Nos Estados Unidos o liberalismo adquiriu mais claramente a faceta moralista, através do fenômeno conhecido como “evangelho social”. Um dos maiores nomes neste quesito é o do teólogo batista Walter Rauschenbusch (1861-1918). Influenciado por Harnack, Rauschenbusch aplicou ao seu método teológico a ênfase nas questões de justiça social. Em obras como Christianity and the Social Crisis (o Cristianismo e a crise social, 1907) e A theology for the social gospel (Uma teologia para o evangelho social, 1917), ele reinterpretou o sistema de doutrinas cristãs a partir de uma perspectiva centrada no homem.

Segundo o historiador Mark Noll, “a teologia de Rauschenbusch não tinha lugar para a expiação vicária, um inferno literal ou uma segunda vinda literal”10. O seu rompimento com a ortodoxia ficava, assim, evidente a partir do abandono de pontos fundamentais como a morte substitutiva de Jesus, e a centralidade de Deus na teologia e vida da igreja.

Fundamental para a compreensão do liberalismo é também a percepção do método histórico-crítico de interpretação. Segundo Lopes, “esse método parte dos pressupostos racionalistas e existencialistas que subjazem ao Iluminismo”11. Em linhas gerais o aspecto histórico do livro é analisado, e sobre o texto é feita a crítica em suas várias nuances (da forma, das fontes, das tradições e da redação). O pressuposto por trás deste método de análise é o de que a Bíblia é um livro humano, passível dos erros que os indivíduos cometem, porém importante para a apreensão de valores morais, bem como para a compreensão da religiosidade judaica.

Matos aponta o apogeu do pensamento liberal como a década de 192012. Em sua descrição, os trágicos eventos como as guerras mundiais e crises econômicas, bem como a reação de outras correntes teológicas serviram para contestar o otimismo apresentado pelos pensadores deste grupo.

A descrição de Lopes sobre o que ele chama de “os antigos liberais”13, em contraste com os neoliberais na teologia, é de que eles eram mais honestos e claros nos pontos que divergiam da postura ortodoxa - “os antigos liberais eram impressionantes por sua firmeza, por sua clareza e coragem14”. Segundo o autor mencionado, hoje há um remanescente liberal que não se identifica abertamente como tal, mas trabalha a partir desses pressupostos.

O resultado do liberalismo na europa e Estados Unidos foi o crescimento da secularização. A igreja, esvaziada da mensagem salvadora do evangelho, perdeu a sua força e se tornou semelhante a outros grupo filantrópicos, ou ficou restrita a poucos acadêmicos mais interessados em desmistificar a Bíblia, ou ainda adotou uma postura tão aberta diante de outras religiões que deixou de falar sobre o cristianismo.

* As notas de rodapé estão disponíveis apenas no artigo em PDF, que pode ser baixado na página de artigos e publicações.

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