segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Uma palmada do Estado


A vara e a disciplina dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma vem a envergonhar a sua mãe. [...] Corrige o teu filho, e te dará descanso, dará delícias à tua alma.

Provérbios 29.15,17

 

Na última quarta-feira o projeto de lei 7.672/2010, conhecido como “a lei da palmada”, foi aprovado por unanimidade na comissão especial da Câmara dos Deputados. Ao que parece, a bancada evangélica teve tímida participação no processo mais amplo de discussão do projeto. Conforme matéria da Folha.com, possivelmente tal bancada sugeriu a troca do termo “castigo físico” por “agressão física”, mas os representantes dos direitos da criança e do adolescente não gostaram da idéia, e assim ficou o termo “castigo corporal”.1

Por meio deste projeto, o Estado pretende regular a esfera da família, controlando o exercício da disciplina e correção por parte dos pais. Seria isso legítimo?

 

A igreja e a manipulação cultural

Em 1970 o pastor Francis Schaeffer2 escreveu sobre a percepção da igreja diante das formas de manipulação possíveis. Para ele, era necessário atenção e sabedoria.

 

Não há dúvidas de que o futuro se encontra aberto para manipulação. Quem a fará? Será uma nova elite institucional partidária de um governo autoritário ou outra elite? Quem obtiver poder político ou cultural no futuro terá à sua disposição técnicas de manipulação que nenhum governante autoritário jamais teve. Nenhum desses recursos é apenas futuro; todos eles já existem hoje e estão à espera de serem empregados pelos manipuladores.

 

Schaeffer lista os itens de controle então percebidos: a manipulação científica; da lei; da História; na religião; no teatro e nas artes; na TV; e a manipulação química. Aquilo que foi descrito há 40 anos hoje é realidade presente.

No caso específico da discussão a respeito da disciplina física às crianças, temos a manipulação da televisão, com ênfase exagerada nos pais que abusaram da força na correção, e nenhuma menção a todas as demais crianças que foram beneficiadas com a “palmada”. Celebridades, como a Xuxa, mostram o rosto para apoiar a causa. A manipulação científica também é facilmente percebida. Os ativistas dos direitos da criança e do adolescente normalmente recorrem a algum “cientista de renome”, seja médico, psicólogo, pedagogo ou alguém semelhante, para validar a idéia de que exercer a correção física sobre a criança promove traumas e outros males. As formas de manipulação estão diante de nós. Que faremos?

 

Um breve diagnóstico

 

Uma observação rápida levanta questões e observa problemas no processo de aprovação deste projeto de lei. Primeiramente, seguindo uma perspectiva calvinista, especialmente nos termos de Abraham Kuyper3, há um grande problema em ver o Estado interferindo na esfera da família. O Estado possui uma esfera própria de atuação, que não envolve diretamente o controle das liberdades individuais e familiares. Assim como a esfera do Estado, a da família presta contas diretamente a Deus, e exerce nível próprio de soberania. O Estado não é nosso pai, mãe, ou babá. Deus criou pais e mães para os indivíduos.

Em segundo lugar, enquanto a idéia de um Estado excessivamente intervencionista é preocupante (não apenas na economia, mas agora na vida familiar), percebe-se, em nível mais específico, a manipulação da lei descrita por Schaeffer. Se, por meios legais, o comportamento dos pais diante de seus filhos for determinado, estamos submetendo uma série de princípios bíblicos a outra autoridade, e com isso, violando a lei do Altíssimo.

É necessário falar também da apatia evangélica diante dos caminhos tomados política e culturalmente. A bancada evangélica age com timidez e desconsidera elementos mais básicos da Escritura. Mas não só ela: no resto de nosso país há silêncio e alienação por parte dos evangélicos.

Finalmente, há os que falam. Mas estes estão tomados, em grande medida, pelo que pode ser chamado de “conservadorismo vazio”. Alguém levanta a pergunta: - é certo bater nos filhos? E eles respondem com algum tipo de agumento baseado exclusivamente na tradição, como se ela fosse autojustificada.

Perceber esses itens nos leva a concluir três graves problemas entre os evangélicos: (1) Nossa inabilidade de lidar com o texto bíblico; (2) Nossa incapacidade de pensar os eventos em seu contexto mais amplo; e (3) Nossa incapacidade de fornecer respostas sólidas e fundamentadas às questões do nosso tempo.

 

A articulação necessária

Podemos seguir estes problemas como um roteiro para a resposta sábia. Partimos da fonte última de autoridade: Deus e Sua Palavra. O texto de Pv. 29.15,17 estabelece pontos relevantes para a discussão sobre a disciplina dos filhos.

O autor dos provérbios estabelece uma relação de causa e efeito entre o uso da “vara” - a disciplina física – e o crescimento em sabedoria. O argumento é claro: disciplinar o filho o tornará mais sábio. Usando outro caminho, o autor revela que não exercer a correção é o mesmo que entregar o seu filho a si mesmo – o que é considerado abandono. Aqui temos uma lógica interessantíssima: os ativistas contemporâneos lutam contra o abandono, mas segundo a Escritura, o que fazem ao apoiar este projeto de lei é promover este mesmo abandono das crianças. Você deseja ter um filho sábio que não se sinta abandonado?

No versículo 17, a correção é vista como fonte de beleza e satisfação. Os pais que corrigem seus filhos os livrarão de práticas piores, e alimentarão beleza e graça em seu relacionamento. Deus ensina que o “castigo corporal”, administrado segundo a Sua Palavra, é algo bom e proveitoso para todos: o próprio Deus, os pais, os filhos e a sociedade.

No corpo dos princípios e ensinamentos bíblicos, podemos perceber pressupostos estabelecidos, ao utilizar termos como disciplina e correção, como a realidade de elementos morais e epistemológicos, como certo e errado, justo e injusto, verdadeiro e falso.

Caminhando no roteiro, chegamos à necessidade de uma compreensão mais abrangente dos eventos à nossa volta. O que está envolvido na aprovação deste projeto?

Algo já foi mencionado. O cristão, e o [cristão] reformado, mais especificamente, possui forte bagagem bíblica, teológica, filosófica e histórica para se contrapor à noção de um Estado que interfere em esferas fora de sua alçada. A perspectiva mais ampla segue o raciocínio: se o Estado cresce a cada dia, tomando para si áreas que era de responsabilidade exclusiva dos indivíduos e famílias, o que o impedirá de continuar crescendo, e atingindo outras áreas? O que o impedirá de um controle final e absoluto sobre a vida dos cidadãos, sobre as famílias, e sobre as religiões?

Alguém poderá contra-argumentar, afirmando que existem direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal, mas acredito que se trata de uma resposta ingênua. A filosofia do Direito que hoje rege as faculdades e tribunais é uma que exclui Deus. O direito agora é percebido exclusivamente de maneira sociológica: as transformações sociais promovem as transformações jurídicas. Deste modo, cabe ao judiciário, mais do aplicar a lei, interpretá-la conforme os novos tempos e práticas. Foi assim que o STF violou a Constituição no recente caso da união de homossexuais. Por que não voltaria a fazer o mesmo em outras áreas? A Constituição não é mais algo objetivo, mas sujeito às interpretações de pessoas cuja cosmovisão acompanha uma filosofia que exclui Deus.

O tom alarmista não deve nos assustar. Não se trata de uma tentativa de amedrontar, mas de nos fazer pensar, orar, e agir na cultura de modo consistente. A apatia evangélica pode ter resultados sérios.

O último item de nosso roteiro é a necessidade de uma resposta sólida e consistente, argumentos fundamentados que não manifestem um conservadorismo vazio. As respostas comuns têm alimentado o ceticismo, o cinismo, e as abordagens contrárias à disciplina física. Quando perguntados, ou comentando o caso da disciplina, os conservadores vazios respondem: “sempre foi assim”; ou “está na Bíblia”; ou ainda “meu pai fez assim e nem por isso eu morri”. Todas estas respostas, mesmo a da Bíblia, refletem a ausência de uma reflexão honesta sobre o caso, e a incapacidade de articular e fornecer respostas sábias e fundamentadas. Simplesmente dizer que está na Bíblia não fala nada ao homem do nosso tempo, é preciso explicar o que é a Bíblia, a sua autoridade, e o modo como a Escritura trabalha o tema. As demais respostas também são inúteis, e fazem os outros se afastarem ainda mais da abordagem da correção física. Afinal, nem os seus defensores sabem o porquê disso.

Deste modo, podemos oferecer uma resposta melhor fundamentada, articulando a Escritura, a história, a tradição, e pensando a disciplina adequadamente. Sugiro a combinação das cinco proposições abaixo:

 

1. A Bíblia estabelece uma relação de causa e efeito entre a disciplina e a sabedoria. Considerando a Bíblia como Palavra de Deus, e portanto, autoridade absoluta e inerrante, Deus institui a correção física. Não apenas isso, mas o Senhor ensina que o castigo corporal promove a sabedoria nas crianças. Se desejamos o seu bem, a disciplina precisa ser considerada.

2. A disciplina trabalha categorias morais na criança. Por meio da correção, a criança é exposta a um conjunto de categorias morais, e aprende sobre a existência do que é certo e errado. A aquisição destas categorias de pensamento ainda na infância são fundamentais para um crescimento equilibrado, e uma vida ajustada nas idades mais avançadas. Os indivíduos cujas categorias morais são distorcidas caem na corrupção, na criminalidade, e em erros de várias outras naturezas. Além da compreensão de certo e errado, a criança disciplinada aprende sobre o que é justo e injusto. Ao desobedecer pai e ser corrigida, ela compreende que é um ato de justiça exercer disciplina sobre quem desobedeceu leis. Novamente, isso tem grande impacto sobre a formação da criança, e sua caminhada na infância e na vida adulta. Sem o aprendizado das categorias de justiça e injustiça, tal criança pode ser tornar um pai que abusa da força na disciplina de seu filho, ou um homem que age injustamente na cultura de várias maneiras.

3. A disciplina trabalha categorias epistemológicas na criança. O desdobramento da aquisição de categorias morais, é a percepção de categorias epistemológicas fundamentais. Se existe certo e errado, justo e injusto, a criança, também perceberá que existe o verdadeiro e o falso. O gesto da mentira será disciplinado. Ao ser desobedecida, a mãe que ordenou algo demonstrará que estava falando a verdade ao anunciar que o erro seria punido. Na cultura contemporânea, a noção de verdade é atacada, e talvez um relativista do nosso tempo não pense que este item seja bom. Mas novamente precisamos pensar em termos amplos. É fundamental que uma criança aprenda tais categorias epistemológicas, sob pena de ter seu crescimento e formação comprometidos. Se não há verdade e mentira, por que colocar uma criança na escola? Se não há verdade e mentira, por que pagar um funcionário após um mês de trabalho? Se não há verdade e mentira, por que um piloto de avião não muda todos os procedimentos a 33.000 pés de altura? Uma criança sem tais noções não terá capacidade de aprender, de se comunicar, nem de confiar ou ser confiável.

4. A disciplina previne e prepara a criança para a vida. Para além das categorias morais e epistemológicas mencionadas nos itens anteriores, a prática da correção livrará a criança de cometer o mesmo erro em outras situações, e a protegerá de cometer vários outros erros na vida. Tudo tem origem naquela palmada da infância.

5. A disciplina manifesta amor. Novamente recorremos a nossa fonte de autoridade: Deus e Sua Palavra. Em Hebreus 12.6, é o próprio Deus cristão que anuncia: “[...] o Senhor corrige a quem [Ele] ama”. O texto trata da questão da paternidade de Deus, e o modo como Ele ensina Seus filhos. Jesus conjuga disciplina e amor. Os ativistas argumentam que a correção é mera expressão de ira e autoritarismo, mas aqui somos confrontados com outra realidade. Queremos expressar amor por nossas crianças tanto quanto estes ativistas, porém entendemos que exercer a correção é parte dessa expressão de amor. Não podemos ser privados disso. Amamos demais nossas crianças para não corrigi-las.

 

Para um diálogo contínuo

Estes cinco itens, corretamente compreendidos e articulados, fornecem uma boa resposta aos questionamentos levantados sobre a lei da palmada e seus desdobramentos, mas ainda cabe um item de reflexão.

O cristão não é utópico, nem pessimista, mas realista. Fugindo da utopia, não pensamos que todos os pais que batem em seus filhos o fazem adequadamente. Exatamente por isso a Escritura ensina que os pais não devem disciplinar a criança de modo exagerado (Efésios 6.4). Não somos ingênuos, e queremos protestar junto com os ativistas contra o exagero e abuso de alguns pais. Violentar, maltratar e agredir uma criança é algo desumano e contra a Lei do Senhor.

Por outro lado, estamos distantes dos ativistas porque não pensamos com o pessimismo deles. Não entendemos que todas as manifestações de castigo corporal são abusivas e destrutivas. Pelo contrário, fundamentados na Palavra de Deus, entendemos que é possível bater na criança de modo amoroso, para o seu bem.

Assim, o cristão se encontra num lugar de equilíbrio e realismo. Contra o abuso e a ausência de disciplina, lutamos para que a Palavra de Deus seja cumprida, e assim nossas crianças tenham a melhor formação possível, sendo disciplinadas quando cometem erros, para que sejam pessoas melhores, e assim Deus seja glorificado no enriquecimento da sociedade, composta por indivíduos corretamente formados.

A Deus toda a glória.

 

1Lei da Palmada é aprovada por unanimidade em comissão da Câmara. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1021280-lei-da-palmada-e-aprovada-por-unanimidade-em-comissao-da-camara.shtml>. Acesso em: <18, Dez. 2011>.

2SCHAEFFER, A igreja no século 21. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 79. O livro em questão é uma coletânea de obras do autor. A citação é da obra “A igreja no final do século 20”.

3Abraham Kuyper foi primeiro ministro da Holanda, além de pastor, jornalista, fundador da Universidade Livre de Amsterdã e do partido anti-revolucionário. É conhecido pelo conceito de soberania das esferas, no qual existem esferas criadas por Deus, que possuem soberania própria e não devem interferir umas nas outras. A família é uma destas, e o Estado outra. Cf. KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002. p. 85-113.

2 comentários:

Casal 20 disse...

Parabéns pelo ótimo texto. Abordagem crítica e cristã. Revela como estamos muito longe de termos um pensamento coerente com aquilo que cremos e como nossas posições são fracas diante do que precisamos fazer.

A bancada evangélica é uma verdadeira tristeza na sua maneira de dialogar e apresentar seus argumentos, daí ela nem ser levada em questão nas discussões. Piora quando sabemos que, para cada parlamentar dessa bancada, há um mundo de gente e igrejas por trás que não sabem defender a razão de sua fé. E apenas submergem diante de interesses imediatos e denominacionais ou, cegamente, seguem as diretrizes dos partidos.

Abraços sempre afetuosos.

Fábio.

Anônimo disse...

Eu recomendo a leitura desse texto. Lamento ser em ingles, mas creio que muitos leitores tem tradutor:

http://www.biblegems.com/SPANKINFO.HTM