Em 1979, Francis Schaeffer e Colin Duriez trocaram correspondências a respeito da doença do fundador de L'Abri. Em 1984 ele faleceria, como resultado do câncer. Mas na carta escrita por Schaeffer naquele período havia uma belíssima declaração:
Como é bom ter uma teologia na qual não há tensão entre usar a melhor medicina possível e olhar diretamente para o Senhor, buscando a resposta das orações. (Duriez, Francis Schaeffer: an authentic life, p.196 - kindle edition)
Isso poderia abrir uma interessante discussão sobre medicina, fé e oração, mas pretendo apontar a direção que, eu creio, Schaeffer pretendia enfatizar. No pensamento cristão consistente, não há dicotomias ou uma separação entre o campo da "graça" e o da "natureza" - uma distinção entre as coisas comuns da vida e as coisas "espirituais".
Os desdobramentos deste ponto são imensos. Schaeffer demonstrou como ele poderia buscar o melhor da medicina e se voltar a Deus em oração simultaneamente, sem crise de que um "devorasse" o outro, por não haver contradição. Do mesmo modo um cristão pode pedir a Deus pela provisão, e trabalhar duramente, compreendendo a unidade entre as duas coisas. Alguém pode (e deve!) ler a Bíblia sem considerar este um momento distante do resto da vida; pelo contrário, como o salmista, toda a experiência da vida no dia a dia passa a ser um exercício de interpretação e aplicação bíblica.
Luiz Rosa no palco. O centro histórico em flor. |
Foi realizado em São Luís o 3º festival internacional de contrabaixo, com grandes nomes do instrumento, como o maranhense Mauro Sérgio, o divulgador da coisa no Brasil inteiro - Celso Pixinga, e os norte-americanos Jim e Grant Stinnett (Jim é professor da Berklee - conceituada faculdade de música em Boston), Todd Johnson, e Shane Alessio, além do baterista e jazzista Dom Moio.
Se você parte de uma visão fragmentada da realidade, o festival poderia despertar algumas posturas:
1. Não é algo "espiritual", portanto não irei
2. Não é algo "espiritual", mas é algo "comum", então irei e aproveitarei como algo separado do reino da graça
3. É "espiritual"! Deus está ali falando e se revelando a partir da cultura - o abalo existencial provocado pela música é a Revelação de Deus
As duas primeiras colocam o show no reino da 'natureza', com respostas diferentes. Por ser algo "comum" (não-espiritual), a primeira resposta considera algo desprezível, ou age com indiferença. Há muitos que vivem de modo empobrecido, por não desenvolverem interesse pela criação de Deus em sua variedade. A beleza das artes, a criatividade humana, as profissões e vocações, são todas diminuídas em sua importância pela preferência das coisas "espirituais" - talvez oração e leitura da Bíblia. O cristão nessa perspectiva tem pouca liberdade de vida. É escravo da "vida espiritual", e assim vive sem prazer durante toda a semana, até que chegue o domingo, ou então cria atividades eclesiásticas todos os dias para justificar a sua existência. Essas são as pessoas conhecidas como fanáticos, ou limitados em suas conversas (monotemáticas). Pessoas que, mesmo valorizando as disciplinas espirituais, definiram o escopo de aplicação das Escrituras e limitaram a experiência de adoração na vida. No esforço de tanto glorificar ao Senhor, o fazem menos do que deveriam.
A segunda resposta tenta encontrar o prazer através do "salto". O festival de baixo continua sendo não-espiritual, mas será desfrutado dentro do seu campo secular. Afinal, as coisas de Deus são aproveitadas aos domingos, e as coisas seculares regulam o resto da vida. Esse tipo de cristão pode ser mais versado e articulado no resto das expressões culturais; pode valorizar as artes e as profissões; pode ter a ciência e a filosofia em grande estima, mas tudo às custas da exclusão da Palavra de Deus. Ele busca o valor de cada elemento separado de Deus, e assim também empobrece a sua experiência de vida. Tem um universo de particulares desconectados e sem sentido último. O festival de baixo não tem propósito último e não está ligado ao todo da vida, é apenas mais uma oportunidade solta de satisfação.
O terceiro a responder se aproxima de uma perspectiva Tillichiana (de Paul Tillich e sua teologia da cultura). Ele ainda pensa de modo fragmentado, mas agora eleva a arte ao patamar de cima - o reino do sagrado, ou da graça. Na medida em que as artes o tocam profundamente, e que o seu espírito é alimentado pela beleza dos sons e cores, ele atribui a isto o mesmo peso da Revelação Divina, considerando tal "abalo existencial" como Palavra de Deus. O resultado disso é uma grande abertura cultural, mas a perda da autoridade bíblica, que foi nivelada a qualquer experiência significante. A voz de Deus nas Escrituras é abafada e perdida em meio à adoração das artes e expressões culturais. O cristão passa a ser alguém confuso, direcionado pela estética e sem conteúdos reais de fé.
Jim Stinnett, Shane Alessio, Dom Moio e Todd Johnson |
Eu experimentei um pouco disso. Pude ouvir um grande som, e alimentar não apenas os ouvidos, mas os olhos com a paisagem do centro histórico de São Luís, em uma experiência de beleza tocante. A presença de amigos e de minha esposa tornaram a coisa ainda mais prazerosa e significante, e lá eu via e sentia gratidão a Deus: a vida em sua plenitude é experimentada quando Jesus é o ponto de referência e unificação. Tudo fazia sentido.
7 comentários:
Q belo texto. Rico e profundo. Sensível e perturbador. Poético e filosófico.... Saúde!
Obrigado, Silas! Parabéns a você e a toda a equipe pela produção do festival!
Somos seus devedores!
Um abraço
Allen,
"ordeno" que você republique isso no 5C. Que texto, mermão! Parabéns!
Abraços!
Seu desejo é uma ordem! Ou sua ordem é um desejo...?
Já está publicado por lá!
abç!
"...toda a experiência da vida no dia a dia passa a ser um exercício de interpretação e aplicação bíblica..."
Gostei de todo artigo, mas especialmente dessa frase. O grande problema é que a interpretação moderna dos que se encontram dentro da maioria das igrejas, não é bíblica, mas, pragmática. A emoção, os sentimentos e as conveniências de cada grupo estão acima das Escrituras em nome do próprio Deus.
Essa é uma triste realidade, Clodoaldo.
Precisamos ter a Escritura no conceito mais elevado possível, e também temos que ser consistentes em nossa prática diária.
Abraço
Fantástico Allen, concordo com os demais comentarios que o estimulam a divulgar esse texto, essa é uma visão bem interessante das coisas que ouvimos falar nas igrejas sobre a música. Parabéns!
Postar um comentário